terça-feira, 22 de abril de 2008

Acorrentados

Quem coleciona selos para o filho do amigo?
Quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos
anos feriu a quem amava,
Quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho,
Quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia,
Quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre,
Quem se ri das próprias rugas,
Que decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental,
Quem procura na cidade os traços da cidade que passou,
Quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada,
Quem costura roupas para os lázaros,
Quem envia bonecas as filhas dos lázaros,
Quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira,



Quem manda livros aos presidiários,
Quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela mestra, que foi a fera do Colégio,
Quem escolhe na venda verduras frescas para o canário,
Quem se lembra todos os dias do amigo morto,
Quem jamais negligência os ritos da amizade,
Quem guarda, se lhe derem de presente, o isqueiro que não mais funciona,
Quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque
a fim de conversar com um amigo,
Quem coleciona pedras, garrafas, e galhos ressequidos,
Quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças,
Quem quarda as cartas de noivado com um laço de fita ,
Quem sabe construir uma boa fogueira,
Quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos líquens,
Quem procura decifrar no desenho da madeira o hieroglífo da existência,
Quem não se acanha ao achar o pôr-do-sol uma perfeição,
Quem se desata em sorriso a visão de uma cascata,
Quem leva a sério os transatlânticos que passam,
Quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz,
Quem de repente liberta os pássaros do viveiro,
Quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo,
Quem julga adivinhar os pensamentos do cavalo,

" Todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre."

Autor:

Paulo Mendes Campos

( O anjo bêbado)

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