segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Perder ganhar


Perder, ganhar, viver

Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa , pois seus corações estavam programados para a alegria ;vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingando de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco ,enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da Pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos ,pela mesma causa ; vi o garotão mudar o gênero das palavras , acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do Presidente ,que se preparava ,como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões do governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral ; vi as oposições divididas,unificadas na mesma perplexidades diante da catástrofe que levará o povo a se desencantar de tudo ,inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas ,flâmulas e pela quarta vez, e já agora destinados á ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios , removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa nas almas...
E chego á conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados , de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente ;é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória, estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo.
Se uma sucessão de derrotas é arrasadora , também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos,que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica a remoção de detritos: começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo .Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso,ao imponderável, até mesmo ao absurdo ,um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos?
Se a Seleção fosse á Espanha , terra de castelos míticos , apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala,como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil,que mérito haveria nisso? Na realidade ,nós fomos lá
pelo gosto do incerto ,do difícil ,da fantasia e do risco,e não para recolher um objeto roubado.
A verdade é que não voltamos de maõs vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolistíco. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos comtemplou. Paciência , não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.
Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas , readquirirmos (ou adquirirmos, na maioria das cabeças) o senso da moderação,do real contraditório,mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida.
Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres-diabos que jamais atingirão a
grandeza, este valor tão relativo,com tendência a evaporar-se.
Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado , e dizer-lhes, com esse gesto,o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo,e bem o compreendemos em sua doçura solitária. Ora o Telê !Ora, os atletas!
Ora a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós ,mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.
E agora ,amigos torcedores , que tal a gente começar a trabalhar,que o ano já está na segunda metade?

("Jornal do Brasil" , 7.7.82)

Carlos Drummond de Andrade

Em 1982 ,após a derrota que desclassificou a seleção brasileira de futebol da Copa do Mundo, Drummond extraiu dessa decepção uma lição de vida. Que tal relermos esta crônica?

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