sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A pena de morte

A pena de morte , não obstante os esgares e contorcionismos ideológicos que a queiram legitimar, é um crime contra a justiça - e contra o esforço civilizatório da raça humana. Humanizar-se ou hominizar-se é poder suprimir ou sublimar os impulsos primitivos que nos levam a combater o crime - com o crime.
A pena de morte tem como fundamento não o desejo de reparação, ou de justiça, mas a sede bruta de vingança. Na medida de sua adoção , ficamos fisiológica e moralmente comprometidos e emparedados pela lógica - zoológica - do velho axioma iniqüo: olho por olho ,dente por dente. Se o mal com o mal se paga numa estrita e sinistra simetria odonto-oftálmica , não há por que não condecorar , com as mais altas inígnias republicanas os beneméritos esquadrões da morte que exornam nossa paisagem cívica , jurídica e policial.
A pena de morte , incluída na letra do Código Penal, consagra - e institucionaliza o procedimento desses bandos criminosos, transformando-o em norma de justiça. Convenhamos que, em matéria de desordem , poucas medidas seriam capazes de chegar tão longe.

Na avaliação do problema da pena de morte,há que levar em conta o fato de ela, uma vez aplicada, cria uma situação absoluta - e irreparável. A morte é a impossibilidade de qualquer possibilidade, seja lá o que for. Na medida que condenemos alguém a execução capital, estaremos praticando um ato absoluto, desmesurado e ilimitado na sua irretratabilidade.
Ora, para que uma ação desse tipo fosse minimamente legitimavél , seria necessário que os julgamentos humanos pudessem reividicar para si um grau também absoluto de certeza e de verdade. Só posso castigar quem quer que seja, de maneira absoluta, na medida de uma absolutização paranóica de minhas razões, critérios e discernimentos.
A pena de morte implica, por parte daqueles que a defendem, uma usurpação do lugar da divindade. Só Deus é senhor absoluto e juiz supremo da vida e da morte.

Isso posto, não me venham dizer que o apoio á pena capital seja compatível com uma visão religiosa - ou cristã do mundo e das coisas. O Evangelho se fundamente no amor - não na vingança, e seu espírito repele até mesmo a justiça sem misericórdia. Cristo ao morrer pela redenção do homem, inundo-o infinitamente com a possibilidade de graça transformadora e regeneradora. Se Lázaro ressucitou dos mortos, qualquer ser humano pode emergir das trevas da iniqüidade, do pecado e do crime, pela graça de Deus.
A adoção da pena de morte é um ato de desespero social, que atenta contra a esperança e contra o mistério da Redenção, golpeando em seu cerne o mandamento supremo do amor ao Próximo.

Além dos aspectos filosóficos e religiosos que a condenam, a pena de morte é perfeitamente indefensável a partir de argumentos sociais e políticos. Cada sociedade tem os criminosos que merece, isto é, a prática do bem e do mal, ou a maneira pela qual os seres humanos se relacionam, tem tudo a ver com a vida comunitária e com o grau de justiça ou de injustiça - que lhe define a estrutura.
A fome , a opressão espoliadora, o abandono da infância, o desemprego em massa, os graves e clamorosos desníveis entre as classes não constituem , obviamente, boa fonte de inspiração para um correto exercício da cidadania. O processo civilizatório, pelo qual cada um de nós dá o salto da natureza para a cultura, de modo a tornar-se sócio da sociedade humana, exige renúncias cruciais - e sacrifícios cruciantes.
Na infância, através das vicissitudes do complexo de Édipo, temos que abrir mão de nossas primeiras e decisivas paixões. Depois , o corpo social nos impõe a lenta e dolorosa aquisição de uma competência, que nos qualifique para um trabalho e para o pão de cada dia.
Tudo isso - contadas as favas , nos custa os olhos da cara, e da alma. È preciso, de maneira absoluta, que cada trabalhador, seja ele qual for, receba da comunidade um retorno salarial e existencial condigno, expressão do respeito coletivo pelo seu esforço.
Este é um dever social irrevogável, ao qual correspode um direito sagrado. A ruptura desta articulação articulação constitue uma violência inaudita, capaz de tornar-se a matriz de todas as violências - e de todos os crimes . Uma sociedade como a nossa, visceralmente comprometida com a injustiça e, portanto, geradora de revolta e delinqüencia, cometeria uma impostura devastadora e destruidora - se adotasse a pena de morte.
Ao invés de fabricarmos bodes expiatórios, temos todos que assumir, sem exceção de ninguém, a responsabolidade geral pela crise - e pelo crime.

Há por fim, a favor da pena de morte , o argumento psicológico da intimidação. O criminoso, diante do risco de perder a vida, pensa duas ou mais vezes na conseqüência
fatal do delito que o tenta, acabando por desistir de praticá-lo . Afirma-se aqui o príncipio - psicanaliticamente ilusório , de que o delinqüente
grave tem arraigado amor á própria vida.
Em verdade, acontece o oposto. A auto estima do ser humano se constrói a partir dos cuidados do amor - recebidos de fora , dos outros. Este amor, internalizado, vai constituir o fundamento da possibilidade que cada um terá de amar-se a si mesmo, por ter sido amado. Se sou capaz de amar a mim próprio, e á minha vida, sou também proporcionalmente capaz de amar ao Próximo , meu semelhante, meu irmão e meu espelho.

O criminoso grave , ao liquidar a sua vítima, condena-se, por mediação dela, á morte, com ódio e desprezo. Não o imitemos, através da pena de morte.

Hélio Pellegrino




"Jornal do Brasil"

03.07.1985

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