terça-feira, 16 de setembro de 2008

Fronteira

José J. Veiga


Eu era ainda muito criança , mas sabia uma infinidade de coisas que os adultos ignoravam. Sabia que não se dve responder aos cumprimentos dos glimerinos,
aquela raça de anões que a gente encontra quando menos espera e que fazem tudo para nos distrair de nossa missão: sabia que nos lugares onde a mãe-do-ouro aparece á flor da terra não se deve abaixar nem para apertar os cordões do sapatos, a cobiça está em toda parte e morde manso;sabia que ao ouvir passos atrás ninguém deve parar nem correr , mas manter a marcha normal, quem mostrar sinais de medo estará perdido na estrada.

A estrada é cheia de armadilhas, de alçapões , de mundéos perigosos, para não falar em desvios tentadores,mas eu podia percorrê-la na ida e volta de olhos fechados sem cometer o mais leve deslize. Era por isso que eu não gostava de viajar
acompanhado, a ppreocupação de salvar outros do desastre tirava-me o prazer da caminhada,mas desde criança eu era perseguido pela insistência dos que que precisavam viajar e tinham medo do caminho, parecia que ninguém sabia dar
um passo sem ser orientado por mim, chegavam a fazer romária lá em casa,
aborreciam minha mãe com pedidos de interferência ; e como eu não podia negar nada a minha mãe eu estava sempre na estrada acompanhando uns e outros. Mal chegava de uma viagem era informado de que fulano, ou sicrano ,ou a viúva
de trás da igreja , ou o ancião que perdera a filha afogada estava a minha
espera para nova caminhada .
E sempre tinham urgência, negócios inadiáveis a tratar em outros lugares ,se eu
não lhes fizesse esse favor estariam perdidos ,desgraçados, ou desmoralizados .
Como poderia eu recusar e dar-lhes as costas ,como se não tivesse nada a ver
com os problemas deles? A responsabilidade seria muito grande para meus ombros infantis . Minha mãe preparava a minha matula, dizia "coitado de meu filho, não
tem descanso", beijava-me na testa e lá ia eu a percorrer do novo a mesma estrada, como se eu fosse um burro cativo, levando ás vezes gente que eu nem conhecia, e cujos negócios me eram remotos ou estranhos.
Minha única esperança de liberdade era crescer depressa para ser como os adultos, completamente incapazes de irem sozinhos daqui ali;
mas quando eu baixava os olhos para olhar o meu corpo de menino ,e via
o quanto eu ainda estava perto do chão, vinha-me um desânimo, um desejo maligno
de adoecer e morrer e deixar os adultos entregues ao seu destino. Eu nunca
soube há quanto tempo estava naquela vida ,nem tinha lembranças de haver conhecido outra. Teria eu nascido com alpercatas nos pés e trouxinnha ás costas?
Era difícil dizer que não, embora a hipótese parecesse inconcebível.

Se eu me queixava a outras pessoas, elas faziam um ar compungido ,engrolavam qualquer coisa para dizer que cada um tem que aceitar o seu destino ,e eu
compreendia que eles também estavam me reservando para quando precisassem de mim: outros presenteavam-me com garruchinhas de espoleta, automoveizinhos de corda, quando não um par de botinas novas. Tudo o que eles queriam de mim era resignação e presteza. Naturalmente eu podia acabar com aquilo a
qualquer hora, mas - e a responsabilidade?

Mas não se pense que as minhas caminhadas para lá e para cá fossem uma rotina desinteressante ; nada disso . Raro era o dia em que eu não aprendia alguma coisa nova, e embora a descoberta só tivesse utilidade na estrada, eu a recolhia para utilização futura, ou para ampliação de meus conhecimentos. Foi ao abaixar-me num
córrego para beber água que fiz uma descoberta a meu ver muito importante:
descobri que, quando se derruba uma moeda em água corrente ,não se deve pensar em recuperá-la. Quem tentar fazê-lo poderá ficar o resto da vida á beira da água
retirando moedas.

É como se a pessoa "sangrasse" a areia do fundo da água e depois não conseguisse estancar o jorro das moedas.

Talvez eu não devesse ter contado isso a meu pai , pois não era difícil prever o
que aconteceria. Ele riu em minha cara,e chamou-me fantasista. Como eu insistisse , ofendido,ele reptou-me a prová-lo . Ainda aí eu poderia ter desconverssado , mas não: aceitei o desafio , como se tratasse de um ponto de honra. Levei-o á beira de um córrego, mandei-o soltar uma moeda na água
- e só á força conseguimos tirá-lo de lá dias depois ; e para impedi-lo de
voltar , tivemos de interná-lo .Disseram que a culpa foi minha, mas não consigo sentir-me culpado.

Depois disso notei que as pessoas passaram a me evitar. A princípio pensei que estivessem sendo gentis , tivessem decidido dar-me afinal um descanso , depois de tantos anos de trabalho pessado; mas depois verifiquei que a situação era mais séria ,nem na rua converssavem comigo, os poucos que eu consegui deter estavam sempre apressados, davam uma desculpa e se afastavam
sem olhar para trás.

De repente ocorreu-me um pensamento medonho: será que minha mãe pensava e sentia como os outros? Nesse caso, que martírio não seria a sua vida, preocupada todo o tempo em esconder de mim os seuss sentimentos!
Alarmado com essa possibilidade, eu a observei durante dias, escutei-a no sono, tentando surpreeder uma palavra , um gesto, qualquer coisa que me denunciasse
o seu estado de espírito. Ás vezes me parecia que o meu medo estava confirmado , mas no minuto seguinte eu estava novamente em dúvida. A
única maneira de esclarecer tudo era naturalmente abrir-me com ela. Mas logo
que comecei a expor-le o meu caso percebi o erro que havia cometido.
Estava eu certo de querer a verdade,e não a compaixão de minha mãe? Qual seria
nesse caso o papel de boa-mãe - dar-me o que eu queria ou o que eu temia? Que direito tinha eu de força-la a uma decisão dessa ordem?

Quando acabei de falar abraçou-me chorando e só conseguia dizer: "Meu filho, meu filho tão infeliz".
Qual seria o sentido dessa frase aparentemente tão clara? Seria pena pela minha sorte de guia forçado, pela minha capacidade de amedrontar os outros -
ou estaria ela pensando na minha sina de amedrontar da própria mãe? Chorei
também, mas depois percebi que eu não tinha motivo nenhum para
chorar , eu estava chorando mais por formalidade, porque o que havia eu feito para estar naquela situação ? Que culpa tinha eu da minha vida?

Enxuguei as lágrimas e sentia-me como se tivesse acabado de subir ao alto de
uma grande montanha, de onde eu podia ver embaixo o menino de calça curta que eu havia deixado de ser , emaranhado em seus ridículos problemas infantis , pelos quais eu não sentia mais o menor interesse . Voltei-lhe
as costas sem nenhum pesar e desci pelo outro lado assoviando e esfregando as mãos de contente.

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