terça-feira, 25 de novembro de 2008

A armadilha



(imagem:recantodalidia)

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.
Não demostrava pressa , porém o seu rosto já denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se
por um longo corredor , onde a poeira e detritos emprestavam desagradável
aspectos aos ladrilhos . Todas as salas encontravam-se fechadas e delas
não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.
Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase ,escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar,
como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear
a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la.
E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se
impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho
que antecedera a sua entrada numa saleta escura , recendendo a mofo.
Percorreu com os olhos os móveis ,as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quiz voltar ao corredor , a fim de recomeçar a busca, quando deu
com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada.
Empurou-a.
Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada , um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe
que não se afastasse.
Também Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa , ao fitar os olhos do velho. Deles
emergia uma penosa tonalidade azul .
Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:
- Estava à sua espera - disse , com voz macia.
Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor.
Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.
O outro teve que insistir:
- Afinal, você veio.
Subtraído bruscamente ás recordações , ele fez um esforço violento para não demostrar espanto.
- Ah, esperava-me? - Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse a tona uma irritação antiga: - Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante ,mau farsante. Certamente
aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo
seria difícil descobrir , pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.
- Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.
- Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?
- Nada adivinhei. Apenas esperava sua vinda. Há dois anos , nesta cadeira,
na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.
Por instantes, calaram-se . Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.
Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque , convencido de que somente
assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:
- Antes que me dirija outras perguntas - e sei que tem muitas a fazer-me - quero
saber o que aconteceu com Ema.
- Nada - respondeu , procurando dar á voz um tom despreocupado.
- Nada?
Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação.
Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.
- Abandonou-me - deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demostrar um resto de altivez , acrescentou: - Disso você não sabia!
Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:
- Calculava ,porém desejava ter certeza.
Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas
reminiscências que, mesmo contra a vontade deles , sempre os ligariam.
O velho guardou a arma . Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo . Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria desnecessária. Alexandre
impediu que a fizesse . Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:
- Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo?
Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.
- Não, além de desarmado , você não veio aqui para matar-me.
- O que está esperando, então?! - gritou Alexandre. - Mate-me logo!
- Não posso.
- Não pode ou não quer?
- Estou impedido de fazê-lo . Para evitar essa tentação, após tão longa espera , descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.
Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos,
refazendo-se da surprêsa , abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas
e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.
Ao levantar-se viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.
Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo . Era tarde. O outro já concluíra
seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:
Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.
A fúria de Alexandre chegara ao auge:
- Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!
- Inútil. Se tivesse reparado nela , saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.
- Gritarei, berrarei!
- Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados , despejei os inquilinos.
E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:
- Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.


Murilo Rubião.

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