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domingo, 12 de julho de 2009

Como voce


"Como você definiria o ato de escrever?

- Uma luta. Uma luta que pode ser vã, como disse o poeta, mas que lhe toma a manhã. E a tarde . Até a noite. Luta que requer paciência. Humildade. Humor. Me lembro que estava num hotel em Buenos Aires, vendo na Tevê um drama de boxe. Desliguei o som, só ficou a imagem do lutador já cansado (tantas lutas) e reagindo. Resistindo.
Acertava as vezes, mas tanto soco em vão, o adversário tão ágil, fugidio, desviando a cara. E ele ali, investindo. Insistindo - mas o que mantinha o lutador em pé?
Duas vezes beijou a lona. Poeira, suor e sangue. Voltava a reagir, alguém sugeriu que lhe atirassem a toalha, é melhor desistir , chega! Mas ele ia buscar forças sabe Deus onde e se levantava de novo, o fervor acendendo a fresta do olho quase encoberto pela pálpebra inchada. Fiquei vendo a imagem silenciosa do lutador solitário - mas quem podia ajudá-lo?
Era a coragem que o sustentava?
A vaidade? Simples ambição de riqueza, aplauso?
Tudo isso já tinha sido mas agora não era mais, agora era a vocação.
A paixão. E de repente me emocionei: na imagem do lutador de boxe vi a imagem do escritor no corpo-a-corpo com a palavra.

Lygia Fagundes Telles

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Eu sei

Com este livro Marina Colassanti conquistou o prêmio Jabuti.




A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito
A gente se acostuma para poupar a vida
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

"Eu sei, mas não devia"

Marina Colassanti




- Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1996)

terça-feira, 25 de novembro de 2008

A armadilha



(imagem:recantodalidia)

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.
Não demostrava pressa , porém o seu rosto já denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se
por um longo corredor , onde a poeira e detritos emprestavam desagradável
aspectos aos ladrilhos . Todas as salas encontravam-se fechadas e delas
não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.
Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase ,escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar,
como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear
a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la.
E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se
impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho
que antecedera a sua entrada numa saleta escura , recendendo a mofo.
Percorreu com os olhos os móveis ,as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quiz voltar ao corredor , a fim de recomeçar a busca, quando deu
com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada.
Empurou-a.
Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada , um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe
que não se afastasse.
Também Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa , ao fitar os olhos do velho. Deles
emergia uma penosa tonalidade azul .
Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:
- Estava à sua espera - disse , com voz macia.
Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor.
Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.
O outro teve que insistir:
- Afinal, você veio.
Subtraído bruscamente ás recordações , ele fez um esforço violento para não demostrar espanto.
- Ah, esperava-me? - Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse a tona uma irritação antiga: - Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante ,mau farsante. Certamente
aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo
seria difícil descobrir , pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.
- Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.
- Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?
- Nada adivinhei. Apenas esperava sua vinda. Há dois anos , nesta cadeira,
na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.
Por instantes, calaram-se . Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.
Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque , convencido de que somente
assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:
- Antes que me dirija outras perguntas - e sei que tem muitas a fazer-me - quero
saber o que aconteceu com Ema.
- Nada - respondeu , procurando dar á voz um tom despreocupado.
- Nada?
Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação.
Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.
- Abandonou-me - deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demostrar um resto de altivez , acrescentou: - Disso você não sabia!
Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:
- Calculava ,porém desejava ter certeza.
Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas
reminiscências que, mesmo contra a vontade deles , sempre os ligariam.
O velho guardou a arma . Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo . Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria desnecessária. Alexandre
impediu que a fizesse . Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:
- Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo?
Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.
- Não, além de desarmado , você não veio aqui para matar-me.
- O que está esperando, então?! - gritou Alexandre. - Mate-me logo!
- Não posso.
- Não pode ou não quer?
- Estou impedido de fazê-lo . Para evitar essa tentação, após tão longa espera , descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.
Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos,
refazendo-se da surprêsa , abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas
e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.
Ao levantar-se viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.
Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo . Era tarde. O outro já concluíra
seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:
Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.
A fúria de Alexandre chegara ao auge:
- Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!
- Inútil. Se tivesse reparado nela , saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.
- Gritarei, berrarei!
- Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados , despejei os inquilinos.
E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:
- Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.


Murilo Rubião.

domingo, 21 de setembro de 2008

Cantiga de esponsais

Machado de Assis

Imagine a leitora que está em 1813 , na Igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical.
Sabem o que é uma missa cantada ; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e sacristães , nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas,que já eram
bonitos nesse tempo nem para as matilhas das senhoras graves , os calções, as cabeleiras,as sanefas,as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra , que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. È bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele . Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. " Quem rege a missa é mestre Romão", equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois :"Entra em cena o ator João Caetano"; - ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero certo, o chamariz delicado e popularr . Mestre Romão rege a festa!
Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspectro, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia á frente da orquestra , então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre ; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro .
Não que a missa fose dele ; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.
Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala ; vai a sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar á mesa do janatr. Tudo isso
indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da Mãe dos Homens , onde reside, com um preto velho, pai de José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

- Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.
- Eh!eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar de costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha
o menor vestígio de mulher, velha ou moça , nem passarinhos que cantassem , nem flores, nem cores vivas ou jacundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...
Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não a têm.
As primeiras realizam-se ; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens.
Romão era destas . Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única de tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela ; uns diziam isto, outros aquilo:doença,
falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a cauda da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interogassse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.



E entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começando três dias depois de casado, em 1779.
A mulher que tinha então 21 anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita,
nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias
depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração.
Ideou então o canto esponsalício , e quis compô-lo ; mas a inspiração não pode sair.
Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola,
abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico,
encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta nada . Algumas notas chegaram a ligar-se ;ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte , dez dias depois , vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu , ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste,por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

- Pai José, disse ele ao entrar ,sinto-me hoje adoentado.
- Não; já de manhã não estava bom. Vai a botica...
O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou á noite; no dia seguinte mestre Romão
não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: - moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

- Para que? disse o mestre, isto passa.
O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto , que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo , não quiz outro motivo de palestra ; os que entretinham relações com o mestre foram visita-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo ; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão, - outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

- Está acabado, pensava ele .

Um dia de manhã, cinco depois da festa,o médico achou-o realmente mal; e foi isso que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras.

Isto não é nada ; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas ! Justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamente.Logo
que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E
então teve uma idéia singular: - rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia , uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto e se conte que um mestre Romão...

O princípio do canto rematavaum certo lá; este lá,que lhe caía bem nno lugar era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo
para a sala do fundo, que dava para o quintal : era-lhe preciso ar. Pela janela
viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito
dias , debruçados, com os braços por cima dos ombros,e duas maõs presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

- Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá...

- Lá, lá, lá, lá...
Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.
- Lá, dó...lá, mi,...lá, si ,dó , ré...ré...ré...

Impossível! Nenhuma inspiração, não exigia uma peça profundamente original,mas
enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos.Para completar a ilusão , deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos.
Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro ; a diferença e que se miravam agora, em vez de olhar para baixo . Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo ; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes
não soavam.

-Lá...lá...lá...

Desesperado, deixou o cravo pegou do papel escrito e rasgou. Nesse momento,a
moça embebida no olhar do marido, começou a cantalolar á toa ,inconscientemente,
uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza , abanou a cabeça ,e a noite expirou.



quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Descobrir o prazer de ler

O Ato de Ler

Assim como tantos outros escritores , que não resistiram á tentação de avaliar o ato de ler, seja do ponto de vista da aquisição de conhecimentos , seja do ponto de vista do puro prazer, ou como um ato que envolve os dois processos concomitantemente , Marguerite Duras - escritora francesa contemporanêa - nos dá também o seu depoimento: o da leitura como fonte sempre renovada de prazer.

***

Eu leio de noite. Não consigo ler se não for de noite. Quando criança também lia de noite, no escuro da hora da siesta que esvazia a cidade como a própria noite. Peguei esse hábito com minha mãe, que me disse - sem maiores explicações - que se deve ler no tempo vago. Assim a leitura tomou o lugar do sono na hora da siesta, da mesma forma que,mais tarde, tomou o lugar do sono de noite.

Nunca leio em vez de escrever, conversar com alguém ou por estar chateada. Com um repentino prazer percebo isto - nunca leio por estar aborrecida. Na casa de minha mãe, nunca ouvi alguém dizer "Se você está aborrecida, pegue um livro para ler."

Enquanto eu lia, minha mãe dormia. Eu costumava ler deitada nos tapetes ,nas escadas da casa ,nos lugares frescos, escuros. Também era para esses lugares que eu ia quando queria chorar.
Minha mãe nos deixava fazer o que bem entendêssemos , e ler o desejássemos ; líamos tudo o que podíamos , o que nos caísse nas maãos, o que houvesse. Ela nunca verificava o que estávamos fazendo.

Um dia tive uma experiência de leitura que me pertubou muito, e ainda perturba.
Estava voltando das férias , da Itália ou da Côte d'Azur ; não me lembro. Tudo o que sei é que precisava tomar um trem que saía de manhã, muito cedo, e chegava de noite em Paris. Praticamente não tinha bagagem - apenas uma sacola de lona e um livro.
O livro era enorme , uma daquelas edições da Plêiade.

Uma coisa e certa - ainda não tinha lido aquele livro. Deveria ter lido durante as férias, não li, e agora teria quer ler muito rapidamente, tão rapidamente quanto possível, sem demora ; havia prometido ler e devolver o livro num determinado dia
- devia ser no dia seguinte á minha volta das férias , e sabia que, se não cumprisse minha promessa ,nunca mais poderia tomar outro livro emprestado.

Como eu não tinha meios para comprar livros e não sabia como roubá-los , muita coisa estava em perigo. O trem partiu. Imediatamente abri o livro na primeira página - e fui lendo. Acho que não comi nem bebi durante todo o dia. E quando o trem chegou á 'Gare de Lyon' já era tarde da noite. Provavelmente o trem tinha atrasado e já passava da meia-noite. E eu tinha lido 800 páginas de Guerra e Paz em um dia - metade do livro.

Precisei de muito tempo para esquecer como tinha lido aquele livro. Durante muito tempo me pareceu que havia traído a própria leitura . Agora , lembrando esses fatos , ainda acho a experiência perturbadora. Alguma coisa tinha que ser sacrificada em minha rápida corrida pelo livro - realmente uma outra leitura. Eu havia me limitado á história , á custa da profunda , receptiva leitura do texto
de Tolstoi. Foi como se naquele dia eu tivesse percebido , de uma vez por todas, que um livro tem duas camadas: uma em cima, a camada que me ficou inacessível. A pessoa só percebe a existência dessa segunda camada em um momento de distração da leitura literal, da forma que se vê a infância através de uma criança.

Nunca esqueci Guerra e Paz. Será que li a outra metade? Acho que não; mas é quase como se tivesse lido. Devolvi aquele livro e tomei outros emprestados. Daquele dia o que ficou foi a imagem de um trem atravessando a planície ; o sofrimento do princípio...e a lembrança de minha traição á leitura.

Poucas vezes já li em praias ou jardins . Não é possível duas luzes ao mesmo tempo,
a luz do livro e a luz do dia. Só deve ler com luz elétrica , o aposento escuro e só a página do livro iluminada.

Pode parecer que leio quaquer coisa , de qualquer jeito. Na verdade não faço isso. Sempre li os livros que as pessoas recomendavam - apenas as pessoas, amigos ou leitores em que confio. As pessoas que eu conhecia nunca se baseavam em críticas para saber o que ler e o que não ler. Se eu alguma vez li uma resenha ou crítica de um livro de que gostei, na resenha nunca reconheci o que havia lido. A crítica mata os livros.

No ano passado li as Confissões de Jean-Jacques Rousseau com um pouco menos do prazer que esperava. Depois ,li sete livros de Hemingway em seguida, não conseguia parar - foram sete noites de alegria, de uma alegria sem limites. Mais tarde li
O diário de Samuel Pepys - dessa vez a coisa toda, o homem e a moral de sua época, me
deram um grande desgosto - foi um caso de irreconciliável diferença. Depois, voltei para Diderot e Sophie Volland, para a volumosa e sublime correspondência que surgiu do amor imortal de um pelo outro. Infelizmente só restaram as cartas dele para ela , mas através delas o leitor pode imaginar como ela, sua amante, deve ter sido maravilhosa.

Não existe algo como leitura compulsória. Se a pessoa lê um livro porque é forçada
fica de fora delee fala sobre ele como um robô - apenas para ter alguma coisa que falar sobre ele. Mas o próprio livro fica morto . As crianças que são forçadas a ler por seus pais sabem como a leitura pode ser completamente desnaturada. E os efeitos disso podem durar toda uma vida - toda uma vida em que um livro é algo proibido, inacessível, um objeto de meter medo.

Há pessoas que nunca leêm alguma coisa além das resenhas dos livros, nunca lendo os livros. Pensam que os leram ,falam sobre eles,e ficam contentes consigo mesmas. O que poderia ser feito por tais pessoas? Nada, absolutamente nada. Não vale nem mesmo a pena tentar.
Deve-se deixá-las continuar como são.

Não se deve interferir com os problemas que as pessoas têm com a leitura, ou lamentar que as crianças não leiam, ou ficar impaciente . O que está em questão é uma descoberta fabulosa - a do continente da leitura. Niguém deve insistir
ou pressionar alguém para que leia . Já que existe por aí muita informação sobre a cultura, provavelmente até demais. A pessoa deve partir por si mesma para a descoberta do continente . Descobrir por si mesma. Nascer novamente por si mesma. Precisa ser a primeira a descobrir o esplendor de Baudelaire. E aí está. Se não sentir isso nunca será um leitor, será tarde demais.

Algumas vezes, ver alguém numa condução absorvido na leitura é o bastante para fazer a pessoa querer comprar o livro. Mas não no caso de ficção popular. Ninguém se engana com esse tipo de livro . As duas espécies de livros nunca são expostas na mesma vitrine, nas mesmas casas, nas mesmas maõs . A ficção
popular é impressa em milhões de copias. No que tem sido o padrão
há mais de 50 anos , ás novelas populares servem para uma ligação sentimental,
erótica. Depois de ler esse tipo de livro , as pessoas os deixam nos bancos de jardim , na condução onde outras pessoas os pegam e mais uma vez são lidos . Será que isto é leitura? Acho que é. É uma leitura mínima , mas é leitura , é sair fora de si para encontar o material de leitura, consumi-lo , torná-lo seu, dormir e no dia seguinte ir trabalhar, reunindo-se aos milhões de outross em sua registrada solidão.

Dizem que aquela multidão de faxineiras que todas as noites limpam as lojas de departamentos de Nova Yorque , todas elas param de trabalhar por cerca de uma hora a cada noite para ler os livros que encontram - lá, nas lojas vazias, estão em paz, esperando que o dia comece para irem
para suas casas. É uma imagem maravilhosa. Seria uma pena se não houvesse alguma verdade nela.

'Marguerite Duras'

"Jornal do Brasil", 30.06.85.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Balanco final

"Na infância, na adolescência , a leitura não era apenas minha distração predileta,mas também a chave que me abria o mundo. Ela ,me anunciava meu futuro: identificando-me com heroínas de romances , através delas pressentia meu destino. Nos momentos ingratos de minha juventude, salvou-me da solidão. Mais tarde, ajudou-me a ampliar meus conhecimentos, a multiplicar minhas experiências, a compreender melhor minha condição de ser humano e o sentido de meu trabalho de escritora. Hoje, minha vida está realizada, minha obra está realizada, ainda que possa prolongar-se: nenhum livro me proporcionaria uma revelação fulminante.
No entanto , continuo lendo muito: pela manhã, á tarde antes de começar a trabalhar, ou quando estou cansada de escrever; se , por acaso, passo um noite sozinha, leio; no verão, em Roma, passo horas lendo. Nenhuma ocupação me parece tão natural.
No entanto, pergunto-me: se nada mais de decisivo pode ocorrer-me através dos livros, por que continuo tão presa a eles?
A alegria de ler: esta não diminue. Fico sempre maravilhada com a metamorfose dos pequenos sinais pretos numa palavra que me joga no mundo, que traz o mundo para dentro de minhas quatro paredes. O texto mais ingrato consegue provocar esse milagre. J.F ...36 anos , estenodatilógrafa exp..., procura trabalho, três vezes por semana. Leio esse pequeno anúncio e a França se povoa de máquinas de escrever e de jovens desempregadas. Já o sei: o taumaturgo sou eu .
Se fico inerte diante das linhas impressas, elas se calam; para que adquiram vida, é preciso que eu lhes dê um sentido e que minha liberdade lhes proporcione sua própria temporalidade, conservando o passado e ultrapassando-a na direção do futuro.]
Mas, como durante essa operação escondo-me, ela me parece mágica. Por momentos, tenho consciência de que colaboro com o autor para fazer existir a página que decifro. Esse prazer é recusado ao escritor: mesmo quando se relê, a frase saída de sua pena lhe escapa. O leitor é mais favorecido: é ativo e, no entanto , o livro lhe proporciona riquezas imprevisíveis . Pela mesma razão, a pintura, a música suscitam em mim alegrias análogas ; mas os dados sensíveis representam nelas um papel imediato mais importante. Nesses terrenos , não tenho de efetuar a surpreendente passagem do sinal ao sentido , que desconcerta a criança quando esta começa a soletrar palavras,e que nunca cessou de encantar-me. Abro as cortinas do meu quarto, deito-me num divã, tudo em volta deixa de existir , ignoro-me a mim mesma: existe somente a página preta e branca que meus olhos percorrem.
E eis que me ocorre a surpreendente aventura relatada por alguns sábios taoísta:
abandonado em seu leito uma carcaça inerte ,eles levantavam vôo ; durante séculos viajavam de cume em cume, através da terra inteira e até o céu.
Quando reencontravam ,seu corpo ,este não envelhecera. Assim vago eu. Imóvel, sob outros céus em épocas passadas,e é possível que transcorram séculos antes que me reencontre, a duas a três horas de distância, neste lugar do qual não saí.
Nenhuma experiência é comparável a esta . Por causa da pobreza das imagens, o devaneio é inconscitente ,o desenrolar das lembranças esgota-se rapidamente.
Reconstruir o passado por um esforço dirigido é um trabalho que, como a criação,não
proporciona o gozo de seu objeto. Espontânea ou solicitada, a memória só me fornece
sempre o que já sei. Meus sonhos me surpreendem mais: mas, na medida em que se desenvolvem, desfazem-se , e sua lembrança é decepcionante. Somente a leitura , com
uma extraordinária economia de meios - apenas um volume em minha mão - , cria relações novas e duráveis entre mim e as coisas.
Para ler, gosto de desligar-me. Mas muitas vezes também, durante o verão, leio ao ar livre. A história me transporta para longe; e, no entanto, sinto em minha pele o sol e a brisa, respiro o perfume das árvores, de quando em vez espio o azul do céu:
permaneço onde estou , ao mesmo tempo em que estou em outro lugar . E não sei o que é mais importante nesses momentos: a paisagem que me rodeia ou a história que me é contada.
Também acho agradável ler num trem. Meu olhar recebe, com uma quase passividade, as paisagens quew desfilam pela janela , volta a percorrer o texo ao qual dá a vida: nessa alternância , esses prazeres , ambos preciosos para mim , harmonizam-se deliciosamente.
Muitas vezes ,leio somente pelo prazer da leitura, e não pela obrigação de ter lido:sou um pouco bibliófaga. Por isso, frequentemente minha primeira leitura é
apressada e, uma vez terminado o livro, sou obrigada a relê-lo do início ao fim."


Simone de Beauvoir






(maravilhoso )

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Esau e Jaco

"Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhe os braços a tempo de evitar outros,e, em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os com tamanha ternura que eles não acharam melhor ocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram também um passeio, à tarde, no carrinho do pai.
Na volta estavam amigos ou reconciliados. Contaram à mãe o passeio, a gente da rua, as outras crianças que olhavam para eles com inveja,uma que metia o dedo na boca, outra no nariz, e as moças que estavam às janelas, algumas que os acharam bonitos. Neste último ponto divergiam , porque cada um deles tomava para si só as admirações(...)"



Machado de Assis

Grande escritor

" O meu fim não é só contar os atos ou comentá-los;
onde houver uma lição útil é meu gosto e dever
tirá-la
e divulgá-la como um presente aos leitores."

(Machado de Assis)

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Memorias postumas de Bras Cubas

(imagem:recantodalidia)

"Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é: se poria em primeiro em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.
Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor , para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escritor ficaria assim galante e mais novo. Moisés que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869,na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns 64 anos , rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos de réis e fui acompanhado ao cemitério por 11 amigos .
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia, peneirava uma chuvinha miúda , triste e constante, tão constante e triste que levou um daqueles fiéis da última hora à intercalar esta engenhosa idéia no discursso que preferiu à beira beira da minha cova: - "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podéis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio , estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras , que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que rói a Natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à clausura dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered counntry de Hamlet, sem as ânsias, nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde aborrecido."

autor:

Machado de Assis

(trecho do livro - Memórias póstumas de Brás Cubas)

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

A Dama das Camelias

Alexandre Dumas Filho.

A Dama das Camélias, é considerado um clássico da dramaturgia mundial. A história caiu nas graças da platéia, ora mais elitista, ora mais popular, desde a sua estréia na metade do século XIX. Muitas linguagens apropriaram-se do texto para representações. O romance original migrou para o teatro, para a ópera e para o cinema e, daí, filmagem e refilmagens.



A obra tem flashes autobiográficos, e conta os encontros e desencontros de um amor impossível vivido por Dumas Filho, o talentoso filho ilegítimo de Alexandre Dumas, célebre pelas aventuras dos Três Mosqueteiros.
Dumas Filho soube dramatizar suas experiências, agregando fabulações do popular à requintada e frívola vida da elite burguesa, criando um melodrama clássico na história do teatro. Desde a estréia, A Dama das Camélias ficou num meio termo entre o drama romântico apresentado na comédia Francesa para a elite, e os melodramas apresentados para a massa nos teatros de boulevards.
A tradicional Dama das Camélias conta a história de uma elegante cortesã francesa, em meados do século XIX, que encanta Paris com sua beleza, suas artimanhas no amor e no sexo, sua vida luxuosa e perdulária, mantida por ricos progenitores da emergente burguesia urbana. As mulheres “teúdas e manteúdas” eram a vaidade em vitrine dos senhores proprietários.
A Dama das Camélias e Armand vivem uma grande paixão impossível pela segregação social da sociedade burguesa classista. O pai de Armand trama a separação do casal convencendo a Dama das Camélias que aquela relação é uma ruína para a família e para o futuro do filho. A Dama comove-se. Num ato de nobreza incomum, renuncia a Armand e, resignada com seu infortúnio, fica reconhecida, pela sociedade, como a cortesã mais honesta, humana, e guardiã da falsa moral burguesa.
Na peça de Dumas, em cinco atos divididos em episódios, a pressão é social: ela não pode ficar com um homem de família nobre. Essa cortesã é inspirada em uma mulher real, exercendo até hoje um fascínio em todo o mundo. No fundo, é um livro moral, apesar da temática ousada ainda hoje. A personagem não tem máscaras. Vive à custa de homens, mas se transforma pelo amor.
Com um sentimento verdadeiro, encontra forças interiores para se redimir como pessoa. A discussão moral e ética do livro é, enfim, resumida pelo sentimento do autor, que norteia todo o romance: se Jesus perdoou Maria Madalena, por que não podemos perdoar as mulheres como elas?
O narrador do romance é o confidente de Armand Duval, que o conhece quando Marguerite já está morta. Esse narrador cede a palavra a diversos outros personagens, que se incumbem de reconstruir o passado dos amantes. A narrativa é composta não linearmente pelos sucessivos relatos de Armand, pela reprodução das cartas escritas pelo casal e pela apresentação do diário dos últimos dias da cortesã, finalizado por sua amiga Julie Duprat.
Existe uma ironia velada na história, parcialmente autobiográfica, que pode ter sua origem na mágoa do autor: Dumas Filho (Armand, na peça) é na vida real bastardo, seu senso de justiça social, sua necessidade de proteger e salvar a Dama das Camélias remete às suas relações paternais/maternais conflituosas. Por outro lado, na relação amorosa de Armand, pode-se caracterizar um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens: o “amor à prostituta”, que pode variar “dentro de limites substanciais, do leve murmúrio de escândalo a respeito de uma mulher casada que não seja avessa a namoricos, até o modo de vida francamente promíscuo de uma cocote ou uma profissional na arte do amor”.
O mito central de A Dama das Camélias “não é o amor, é o reconhecimento: a Dama, Marguerite, ama para ser reconhecida e, a esse título a paixão provém inteiramente de outrem”. As encenações, os conflitos, os equívocos e as vilanias que popularizaram a Dama não são de ordem psicológica, são, sim, sintomas do corpo social, são duas paixões de zonas diferentes da sociedade. O amor de Armand é o tipo de amor burguês, segregativo, apropriativo. O amor da Dama é o postulado de ser reconhecida, que culmina quando renuncia a ele, ou “assassina a paixão de Armand”, para eternamente ter o reconhecimento do mundo dos senhores.