quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Descobrir o prazer de ler

O Ato de Ler

Assim como tantos outros escritores , que não resistiram á tentação de avaliar o ato de ler, seja do ponto de vista da aquisição de conhecimentos , seja do ponto de vista do puro prazer, ou como um ato que envolve os dois processos concomitantemente , Marguerite Duras - escritora francesa contemporanêa - nos dá também o seu depoimento: o da leitura como fonte sempre renovada de prazer.

***

Eu leio de noite. Não consigo ler se não for de noite. Quando criança também lia de noite, no escuro da hora da siesta que esvazia a cidade como a própria noite. Peguei esse hábito com minha mãe, que me disse - sem maiores explicações - que se deve ler no tempo vago. Assim a leitura tomou o lugar do sono na hora da siesta, da mesma forma que,mais tarde, tomou o lugar do sono de noite.

Nunca leio em vez de escrever, conversar com alguém ou por estar chateada. Com um repentino prazer percebo isto - nunca leio por estar aborrecida. Na casa de minha mãe, nunca ouvi alguém dizer "Se você está aborrecida, pegue um livro para ler."

Enquanto eu lia, minha mãe dormia. Eu costumava ler deitada nos tapetes ,nas escadas da casa ,nos lugares frescos, escuros. Também era para esses lugares que eu ia quando queria chorar.
Minha mãe nos deixava fazer o que bem entendêssemos , e ler o desejássemos ; líamos tudo o que podíamos , o que nos caísse nas maãos, o que houvesse. Ela nunca verificava o que estávamos fazendo.

Um dia tive uma experiência de leitura que me pertubou muito, e ainda perturba.
Estava voltando das férias , da Itália ou da Côte d'Azur ; não me lembro. Tudo o que sei é que precisava tomar um trem que saía de manhã, muito cedo, e chegava de noite em Paris. Praticamente não tinha bagagem - apenas uma sacola de lona e um livro.
O livro era enorme , uma daquelas edições da Plêiade.

Uma coisa e certa - ainda não tinha lido aquele livro. Deveria ter lido durante as férias, não li, e agora teria quer ler muito rapidamente, tão rapidamente quanto possível, sem demora ; havia prometido ler e devolver o livro num determinado dia
- devia ser no dia seguinte á minha volta das férias , e sabia que, se não cumprisse minha promessa ,nunca mais poderia tomar outro livro emprestado.

Como eu não tinha meios para comprar livros e não sabia como roubá-los , muita coisa estava em perigo. O trem partiu. Imediatamente abri o livro na primeira página - e fui lendo. Acho que não comi nem bebi durante todo o dia. E quando o trem chegou á 'Gare de Lyon' já era tarde da noite. Provavelmente o trem tinha atrasado e já passava da meia-noite. E eu tinha lido 800 páginas de Guerra e Paz em um dia - metade do livro.

Precisei de muito tempo para esquecer como tinha lido aquele livro. Durante muito tempo me pareceu que havia traído a própria leitura . Agora , lembrando esses fatos , ainda acho a experiência perturbadora. Alguma coisa tinha que ser sacrificada em minha rápida corrida pelo livro - realmente uma outra leitura. Eu havia me limitado á história , á custa da profunda , receptiva leitura do texto
de Tolstoi. Foi como se naquele dia eu tivesse percebido , de uma vez por todas, que um livro tem duas camadas: uma em cima, a camada que me ficou inacessível. A pessoa só percebe a existência dessa segunda camada em um momento de distração da leitura literal, da forma que se vê a infância através de uma criança.

Nunca esqueci Guerra e Paz. Será que li a outra metade? Acho que não; mas é quase como se tivesse lido. Devolvi aquele livro e tomei outros emprestados. Daquele dia o que ficou foi a imagem de um trem atravessando a planície ; o sofrimento do princípio...e a lembrança de minha traição á leitura.

Poucas vezes já li em praias ou jardins . Não é possível duas luzes ao mesmo tempo,
a luz do livro e a luz do dia. Só deve ler com luz elétrica , o aposento escuro e só a página do livro iluminada.

Pode parecer que leio quaquer coisa , de qualquer jeito. Na verdade não faço isso. Sempre li os livros que as pessoas recomendavam - apenas as pessoas, amigos ou leitores em que confio. As pessoas que eu conhecia nunca se baseavam em críticas para saber o que ler e o que não ler. Se eu alguma vez li uma resenha ou crítica de um livro de que gostei, na resenha nunca reconheci o que havia lido. A crítica mata os livros.

No ano passado li as Confissões de Jean-Jacques Rousseau com um pouco menos do prazer que esperava. Depois ,li sete livros de Hemingway em seguida, não conseguia parar - foram sete noites de alegria, de uma alegria sem limites. Mais tarde li
O diário de Samuel Pepys - dessa vez a coisa toda, o homem e a moral de sua época, me
deram um grande desgosto - foi um caso de irreconciliável diferença. Depois, voltei para Diderot e Sophie Volland, para a volumosa e sublime correspondência que surgiu do amor imortal de um pelo outro. Infelizmente só restaram as cartas dele para ela , mas através delas o leitor pode imaginar como ela, sua amante, deve ter sido maravilhosa.

Não existe algo como leitura compulsória. Se a pessoa lê um livro porque é forçada
fica de fora delee fala sobre ele como um robô - apenas para ter alguma coisa que falar sobre ele. Mas o próprio livro fica morto . As crianças que são forçadas a ler por seus pais sabem como a leitura pode ser completamente desnaturada. E os efeitos disso podem durar toda uma vida - toda uma vida em que um livro é algo proibido, inacessível, um objeto de meter medo.

Há pessoas que nunca leêm alguma coisa além das resenhas dos livros, nunca lendo os livros. Pensam que os leram ,falam sobre eles,e ficam contentes consigo mesmas. O que poderia ser feito por tais pessoas? Nada, absolutamente nada. Não vale nem mesmo a pena tentar.
Deve-se deixá-las continuar como são.

Não se deve interferir com os problemas que as pessoas têm com a leitura, ou lamentar que as crianças não leiam, ou ficar impaciente . O que está em questão é uma descoberta fabulosa - a do continente da leitura. Niguém deve insistir
ou pressionar alguém para que leia . Já que existe por aí muita informação sobre a cultura, provavelmente até demais. A pessoa deve partir por si mesma para a descoberta do continente . Descobrir por si mesma. Nascer novamente por si mesma. Precisa ser a primeira a descobrir o esplendor de Baudelaire. E aí está. Se não sentir isso nunca será um leitor, será tarde demais.

Algumas vezes, ver alguém numa condução absorvido na leitura é o bastante para fazer a pessoa querer comprar o livro. Mas não no caso de ficção popular. Ninguém se engana com esse tipo de livro . As duas espécies de livros nunca são expostas na mesma vitrine, nas mesmas casas, nas mesmas maõs . A ficção
popular é impressa em milhões de copias. No que tem sido o padrão
há mais de 50 anos , ás novelas populares servem para uma ligação sentimental,
erótica. Depois de ler esse tipo de livro , as pessoas os deixam nos bancos de jardim , na condução onde outras pessoas os pegam e mais uma vez são lidos . Será que isto é leitura? Acho que é. É uma leitura mínima , mas é leitura , é sair fora de si para encontar o material de leitura, consumi-lo , torná-lo seu, dormir e no dia seguinte ir trabalhar, reunindo-se aos milhões de outross em sua registrada solidão.

Dizem que aquela multidão de faxineiras que todas as noites limpam as lojas de departamentos de Nova Yorque , todas elas param de trabalhar por cerca de uma hora a cada noite para ler os livros que encontram - lá, nas lojas vazias, estão em paz, esperando que o dia comece para irem
para suas casas. É uma imagem maravilhosa. Seria uma pena se não houvesse alguma verdade nela.

'Marguerite Duras'

"Jornal do Brasil", 30.06.85.

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