segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Balanco final

"Na infância, na adolescência , a leitura não era apenas minha distração predileta,mas também a chave que me abria o mundo. Ela ,me anunciava meu futuro: identificando-me com heroínas de romances , através delas pressentia meu destino. Nos momentos ingratos de minha juventude, salvou-me da solidão. Mais tarde, ajudou-me a ampliar meus conhecimentos, a multiplicar minhas experiências, a compreender melhor minha condição de ser humano e o sentido de meu trabalho de escritora. Hoje, minha vida está realizada, minha obra está realizada, ainda que possa prolongar-se: nenhum livro me proporcionaria uma revelação fulminante.
No entanto , continuo lendo muito: pela manhã, á tarde antes de começar a trabalhar, ou quando estou cansada de escrever; se , por acaso, passo um noite sozinha, leio; no verão, em Roma, passo horas lendo. Nenhuma ocupação me parece tão natural.
No entanto, pergunto-me: se nada mais de decisivo pode ocorrer-me através dos livros, por que continuo tão presa a eles?
A alegria de ler: esta não diminue. Fico sempre maravilhada com a metamorfose dos pequenos sinais pretos numa palavra que me joga no mundo, que traz o mundo para dentro de minhas quatro paredes. O texto mais ingrato consegue provocar esse milagre. J.F ...36 anos , estenodatilógrafa exp..., procura trabalho, três vezes por semana. Leio esse pequeno anúncio e a França se povoa de máquinas de escrever e de jovens desempregadas. Já o sei: o taumaturgo sou eu .
Se fico inerte diante das linhas impressas, elas se calam; para que adquiram vida, é preciso que eu lhes dê um sentido e que minha liberdade lhes proporcione sua própria temporalidade, conservando o passado e ultrapassando-a na direção do futuro.]
Mas, como durante essa operação escondo-me, ela me parece mágica. Por momentos, tenho consciência de que colaboro com o autor para fazer existir a página que decifro. Esse prazer é recusado ao escritor: mesmo quando se relê, a frase saída de sua pena lhe escapa. O leitor é mais favorecido: é ativo e, no entanto , o livro lhe proporciona riquezas imprevisíveis . Pela mesma razão, a pintura, a música suscitam em mim alegrias análogas ; mas os dados sensíveis representam nelas um papel imediato mais importante. Nesses terrenos , não tenho de efetuar a surpreendente passagem do sinal ao sentido , que desconcerta a criança quando esta começa a soletrar palavras,e que nunca cessou de encantar-me. Abro as cortinas do meu quarto, deito-me num divã, tudo em volta deixa de existir , ignoro-me a mim mesma: existe somente a página preta e branca que meus olhos percorrem.
E eis que me ocorre a surpreendente aventura relatada por alguns sábios taoísta:
abandonado em seu leito uma carcaça inerte ,eles levantavam vôo ; durante séculos viajavam de cume em cume, através da terra inteira e até o céu.
Quando reencontravam ,seu corpo ,este não envelhecera. Assim vago eu. Imóvel, sob outros céus em épocas passadas,e é possível que transcorram séculos antes que me reencontre, a duas a três horas de distância, neste lugar do qual não saí.
Nenhuma experiência é comparável a esta . Por causa da pobreza das imagens, o devaneio é inconscitente ,o desenrolar das lembranças esgota-se rapidamente.
Reconstruir o passado por um esforço dirigido é um trabalho que, como a criação,não
proporciona o gozo de seu objeto. Espontânea ou solicitada, a memória só me fornece
sempre o que já sei. Meus sonhos me surpreendem mais: mas, na medida em que se desenvolvem, desfazem-se , e sua lembrança é decepcionante. Somente a leitura , com
uma extraordinária economia de meios - apenas um volume em minha mão - , cria relações novas e duráveis entre mim e as coisas.
Para ler, gosto de desligar-me. Mas muitas vezes também, durante o verão, leio ao ar livre. A história me transporta para longe; e, no entanto, sinto em minha pele o sol e a brisa, respiro o perfume das árvores, de quando em vez espio o azul do céu:
permaneço onde estou , ao mesmo tempo em que estou em outro lugar . E não sei o que é mais importante nesses momentos: a paisagem que me rodeia ou a história que me é contada.
Também acho agradável ler num trem. Meu olhar recebe, com uma quase passividade, as paisagens quew desfilam pela janela , volta a percorrer o texo ao qual dá a vida: nessa alternância , esses prazeres , ambos preciosos para mim , harmonizam-se deliciosamente.
Muitas vezes ,leio somente pelo prazer da leitura, e não pela obrigação de ter lido:sou um pouco bibliófaga. Por isso, frequentemente minha primeira leitura é
apressada e, uma vez terminado o livro, sou obrigada a relê-lo do início ao fim."


Simone de Beauvoir






(maravilhoso )

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