sábado, 26 de abril de 2008

Aventura

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las
em palavras. É neste sentido,pois, que escrever me é uma necessidade.
De um lado , porque escrever é um modo de não mentir o sentimento
(a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar): do outro
lado ,escrevo pela incapacidade de entender , sem ser através do processo de escrever .
Se tomo um ar hermético , é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta - mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo
um ar involuntariamente hermêtico, o que acho bem chato nos outros. Depois
da coisa escrita , eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma . E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo:
assim como num copo d'agua , uma vez depositado no fundo o que quer que seja , a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa , pior para mim. Aceito o risco . Aceitei risco bem maior,
como todo mundo que vive.
E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência
ou arrogância :
a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de
aventura , e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente . Esse senso de aventura
é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e,
de cambulhada , a escrever.



(Jornal do Brasil- 4.10.1969 )

Clarisse Lispector

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